Seco ou Molhado



     Não tinha horário ou dia certo. Geralmente era um barulho de metal batendo na madeira seca no meio da tarde que anunciava que uma partida de taco logo iria acontecer. Aliás, achar um pedaço de boa ripa, um pé de mesa ou de cadeira velha, já era bom motivo pra se pensar no jogo.
     Alguém afinava um cabo com o facão (naquela época se brincava com tudo que era perigoso, e se fazia tudo que não era recomendável às crianças), outro saia à cata de duas latas grandes de azeite usadas, dum tipo que acho que nem se faz mais, enquanto um terceiro procurava uma bolinha de borracha sobrevivente. Se não encontrássemos a bolinha, aí convidávamos o vizinho rico; ele tinha uma caixa cheia delas e o jogo de taco era a única coisa que o fazia largar aqueles brinquedos eletrônicos dos quais morríamos de inveja. O Betinho era mais ou menos como o Kiko do Chaves, e era o único que tinha um taco comprado.
      Um aviso repetido de portão em portão, resumia a conversa: “ Vamo jogá taco!” e de dentro de mais uma casinha pulava um ou dois piás de bastão na mão. Na minha casa, éramos três irmãos e duas irmãs. Eu achava melhor quando elas participavam também, porque assim eu, o caçula desengonçado, não me sentia tão ruim no esporte.
     De início o jogo acontecia no campinho no alto do morro. Amado campinho!Com suas goleiras feitas de eucalipto. Erguer aquelas goleiras foi o primeiro trabalho de equipe que me lembro de ter feito na vida. Tudo acontecia por lá.
      Quando o campinho foi destruído para dar lugar à uma estação de tratamento de água  – parece que todo mundo que cresceu nas vilas da região metropolitana tem algum lugar de sua infância soterrado por uma obra!  - , o jogo passou a acontecer na rua bem ao lado da nova Corsan.
       Era um tempo de aluguéis caros e pouquíssima grana. As famílias sem casa própria mudavam-se muito, de forma que os integrantes em todas as brincadeiras nunca eram exatamente os mesmos. Ganhávamos e perdíamos competidores e amigos a toda hora. Mas não era tempo de sentir muitas perdas ou saudades; era tempo de cavar dois buracos, alinhar as latas, cuspir na madeira e jogar pro alto pra escolher quem começa com os tacos: lado seco para uma dupla, lado molhado para a outra!
      Os destaques da equipe fixa eram sempre os mesmos: O Samuca, o Naldo, o Careca e o Gabriel. Pesos mortos na equipe: eu, o Daniel Seco ,Sandro e o Betinho. Não por acaso, pois éramos os mais novos. Às vezes, por caridade, o irmão mais velho me escolhia pra fazer dupla. Seria um gesto bacana, não fossem todos os xingamentos , apelidos e aporrinhações típicas de irmão mais velho. O tal bullying naquele tempo não era crime, era regra.
     Deus do céu, era um baita evento! pois diferentemente do futebol que acontecia quase diariamente, o taco precisava algum planejamento. Era ótimo jogar numa tarde de sol e era mais do que ótimo numa tarde de chuva. E tudo que pudesse dar errado ( Uma vidraça quebrada , uma bolada no rosto, um tombo feio,etc.) dava mais graça ao jogo. A pessoa que passasse a pé tinha todo o respeito da gurizada que parava o jogo sem queixas; se passasse de carro, aí tinha que aguentar muita cara feia e muito resmungo.  Afinal, uma coisa era parar a partida um instante,com uma mão no taco e a outra cintura; outra coisa era ter que abandonar o buraco e tirar as latas de seus lugares sagrados.
      O jogo só era interrompido de fato quanto a ultima dupla cansava ou quando uma bolinha caia no pátio da D. Emília, a Bruxa! Sim, tínhamos a nossa bruxa na vizinhança. Ela xingava, esbravejava, não devolvia a bola, ameaçava chamar os pais e todo aquele bem conhecido repertório de bruxa. Mas enquanto a partida durava, era o máximo da diversão!
     Não é coincidência que as nossas lembranças antigas, sejam geralmente as melhores. Ser criança é estrear na vida, e toda estreia marca mais. Mas isto não quer dizer que precisemos sempre olhar a  infância como uma roupa que já não serve ou como um parque que já fechou; talvez até seja! Mas nós ainda somos os mesmos. Mesmo tendo um outro tipo de vida agora, nossos prazeres ainda vêm de uma mesma fonte, apesar de tudo que mudou ou foi esquecido.
      Nossos dias são outros agora, e  se você não cresceu lá no morro da Corsan entre 80 e 90, suas lembranças do Jogo de taco (e suas regras) provavelmente sejam um tanto diferentes das minhas. Mas aposto que o nosso sentimento não mudou muito. Aposto que não mudou  quase nada!
     Mas sinto que não é hora de sentir saudade disso tudo!
     É hora de gritar um pessoal, preparar a bolinha e os tacos e fazer uma escolha bem simples: seco ou molhado... Quem topa?!


Comentários

  1. Não cresci no morro da corsan mas minhas regras não foram tão diferentes, baita texto, duvido que não tenha remetido todos que leram a sua infância.

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