Uma lição pra Vida!

   Como é de costume, levantei de manhã sem saber exatamente como seria o meu dia e menos ainda  como seria o tal compromisso agendado pra hoje.
   O roteiro parecia simples: encontrar alguns colegas na faculdade, pegar o equipamento de filmagem e ir para a FASE(Fundação de Atendimento Socioeducativo) registrar a conversa que fui convidado a ter com um grupo de menores infratores sobre alguns temas relacionados à educação, sociabilidade e autoestima.
    Uma das coisas boas que ter escrito um livro me proporciona são estas conversas que de tempos em tempos eu tenho com os jovens em escolas, eventos, etc;  e embora dessa vez fosse uma situação um tanto diferente, eu estava confiante, pois pra mim não se trata de novidade. Eu tenho essa empatia com gurizada e gosto de ouvir e falar à juventude. Estes jovens eu não conhecia ainda, mas não tinha receio. Eu costumo conseguir ver o lado bom das pessoas e não teria porque ser diferente com eles.
   Chegando na FASE encontramos nosso guia, o meu amigo Carlos Piller, acadêmico em direito e voluntário do Projeto Pescar, que busca resgatar os jovens da vida do crime. Carlos nos conduziu durante a visita. Tirando um certo desconforto que senti ao passar pelas portas de ferro e as grades e os corredores bem vigiados, tudo transcorreu bem. Chegamos em uma sala surpreendentemente agradável, ali os internos realizavam algum trabalho manual, desenho eu acho. Se não fossem pelas telas grossas na Janela e a porta de ferro maciço, eu diria que o lugar era idêntico a uma sala de estudo de uma escola qualquer.
    Com a nossa chegada e antes mesmo de compreenderem o que faríamos ali, os rapazes interromperam suas tarefas solicitamente, nos cumprimentando educadamente. Alguns mais espontâneos, alguns mais reservados, mas no geral, todos muito simpáticos.
    Cumprimentos feitos, objetivos explicados, cadeiras arrumadas, câmera ligada e a conversa teve início.
   Fiz uma introdução breve. Contei um pouco sobre minhas experiências e logo abri para o diálogo, que aconteceu mais rápido e mais naturalmente do que normalmente acontece. Eu pedi para que eles aproximassem as cadeiras pra bem perto de mim, para que pudéssemos enquadrá-los na imagem sem identificá-los. Expô-los não é permitido. Desta maneira, eu tinha um contato visual muito próximo e fiquei entusiasmado com a atenção e o interesse no olhar de praticamente todos (apenas um permaneceu sentado numa classe à parte, e mesmo assim acompanhava a conversa em alguns momentos).
   Como o esperado, falamos muito sobre a criminalidade, falta de oportunidade, menosprezo, o preconceito, o ódio; mas também sobre projetos, família, esperança, recuperação... Eu ouvi histórias, dei conselhos, respondi perguntas, fiz perguntas. Eu em momento algum perguntei a qualquer um deles o que fez ou por que fez...não me interessava. Eu tinha um perfil geral e sabia que alguns casos eram mais graves, mas eu quis escapar do julgamento; eu não me dou este direito. Eu estava ali porque um amigo considerou que eu poderia dar um bom exemplo, e agir como um "dono da verdade"
seria o pior dos exemplos.
    Enquanto eu falava e tentava entendê-los, frases como "Bandido bom é bandido morto", "quem nasce torto, morre torto", "tem que apodrecer na cadeia", "por mim eu matava todos" me vinham a cabeça. Eu não me engano! Eu sei que eu estava diante de ladrões, traficantes. viciados e até assassinos. Jovens que já tinham cometido atos extremos. Erros extremos. Mas na realidade eu via meninos. Como os que almoçam comigo no restaurante da faculdade. Com outras gírias, outros códigos...outras histórias. Mas eu vi meninos. Eu não quis vê-los mortos. Eu quis vê-los recuperados.
    Quando saímos de lá eu não tinha ainda entendido bem a importância daquele acontecimento. Eu só senti que queria, que quero voltar lá um outro dia. Dane-se se a sociedade os odeia. Esta sociedade do ódio e do revanchismo nunca me representou mesmo.
    Mas foi só no estúdio da Faculdade, ao começar a editar as imagens e rever alguns pontos e algumas expressões, que eu me dei conta do motivo por ter sido tão especial e tão relevante;
    Não foi o que eu disse ou como eu disse... Foi o fato de eu estar ali. de eu estar falando e de eu estar ouvindo. Foi o fato de eu me importar.
    Eu não sei se sou um sonhador, um ingênuo ou um iludido. Mas o fato é que eu senti que fui importante hoje. Fui importante ao falar com gente que a maioria acha detestável. Porque sim, eles são autores de atos detestáveis. Mas eu não quero saber o quão fundo na lama eles já mergulharam e nem quero me perguntar se eles são merecedores da minha atenção. Eu apenas sei que não estou preparado para perdoá-los ou condená-los... Como eu disse antes:eu nem me sinto autorizado! Mas sei que não quero continuar os ignorando. Tenho fé que um ou dois ou três ou oito deles mereçam algum crédito. E se não tem ninguém disposto a dar este crédito, acho que eu posso fazer isso. E que a vida me puna se a minha aposta for a errada.
    Um garoto me disse saber que "todos" fora da Fase os desprezam. Não quero estar entre esses "todos". Quero ser parte daquela minoria que ainda tem fé naqueles que parecem mais perdidos.
   É. Eu voltarei lá sim.

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