Julio, os ratos e os demais fantasmas cantantes do sótão

  Estou com um problema sério de ratos aqui em casa.
 Como eu defino se um problema é sério? Se não me deixa dormir, é sério.
  Pois bem, este sério problema me fez arregalar os olhos antes das cinco da manhã. Não era a  primeira vez que eu havia  notado a presença de roedores na casa, mas desta vez, misericórdia! a folia tava grande. Eles desceram do sótão, entraram minha cabeça, invadiram meu sono e já estavam roendo até os alicerces da minha sanidade.
  Fiquei por algum tempo tentando retomar o sono, enquanto inventava ratoeiras meio ridículas na minha cabeça. Meu vô fazia isso. Não imaginava apenas, mas construia. Ratoeiras como gaiolas para pegar as pragas no galpão de ferramentas e depois afogá-las num tanque. Lembrei dele evidentemente. E tomado por está fúria herdada, o único bem que me restou deste inventário, e meio que me sentindo uma cópia orgulhosa do vô, levantei num pulo: " Agora esses filho da puta me pagam!"
  Na real, eu nem sabia o que iria fazer, mas nessas horas, só o fato de levantar de madrugada irado e tentar enxergar os tais bichos, já me parecia algo grandioso. Tirei uns objetos sem uso de cima de uma mesa velha, num quarto que só é ocupado por quinquilharia. Arrastei a mesa para baixo do alçapão. Não era o suficiente. Peguei um puf da sala e coloquei sobre a mesa. Com a lanterna em punho enfiei a cabeça pra dentro do alçapão. Juro que tive um forte receio, quase um medo de enxergar o fantasma de uma menina morta ( é o cinema né! deixa a gente meio retardado). A  lanterna foi mostrando numa dança de luz e sombras todas as partes sujas do sótão que eu podia ver. Um belo efeito, devo dizer... Decepção! Não teve fantasma de menina gritando, nem o ovo do alien se abrindo...nem sequer ratos. Nem coco de rato ou morcego, como julguei provável. Só teia de aranha, sujeira e lá, num canto inacessível, uma caixa de papelão, com algo saindo dela. Livros, deduzi.
    A casa é metade de madeira velha e metade de alvenaria mal acabada. Não vamos derrubar a parte velha e nem terminar a nova, pois moramos de aluguel e as condições do proprietário para vendê-la não são realistas. Melhor morar aqui enquanto der e depois procurar outro aluguel. Enfim, a caixa de papelão estava quase encostada na parede de alvenaria na parte da casa que é mais alta. Lá percebi um outro tampo, que calculei se localizar na parede sobre a porta de um dos quartos. Eu não o tinha percebido até então, mas não liguei. Meu assunto eram os ratos e não o projeto da velha casa. E ali não encontrei nenhum. Desisti. Fechei o alçapão e fui deitar. Mal sentei na cama e o barulho de correria de rato ressurgiu mais forte do que nunca. Ah não, provocação!
 Mas como?! Onde?! Quem sabe na caixa de papelão...
    Fui ao quarto, pois hoje a minha madrinha (falo madrinha porque simplifica explicar o grau de parentesco com a Dalva), a minha madrinha não estava. Foi dormir na casa de uma tia velha. Enfim, abri o tampo do alçapão que parecia uma continuação da parede e: Tará! dei de cara com a caixa. Há um pouquinho mais de um metro de distância. Dali percebi ao redor dela os restos de sujeira de obra, um cisne de gesso pavoroso que de onde eu estava no início não era visível, e sob o pó e a fina camada de cimento solto, umas coisinhas  quadradas de menos de um palmo: Discos de vinil! Longplays! LP's... certo que boa parte da gurizada  ainda não associou o nome ao objeto. De qualquer maneira fiquei surpreso e contente. O primeiro que peguei trazia o título,  " IT'S A HOLI ~ HOLIDAY"  e tinha um quarteto de negros muito estilosos no estilo hippie numa praia; três mulheres e um homem de braços entrelaçados, fotografados de frente e de costas pro mar, na frente e no verso. Bela foto. Um belo trabalho para um disco de duas músicas, uma no lado A e outra no lado B ( Google, crianças! ou Wikipédia. Pesquisem, era assim mesmo) Havia mais.  Um segundo com um grande número 4 na capa, trazia quatro temas internacionais de novelas diversas. Novamente os cantores eram negros. Destes que estavam fora da caixa, todos os eram de artistas negros, exceto um do "SARAGOSSA BAND" que tinha pessoas brancas ao redor de uma mesa de jogo, vestidos como palhaços piratas ou piratas palhaços, não sei bem! Acho que foi a primeira vez na vida que entendi o quanto prefiro a música negra, ou a que é feita por negros! Não me critiquem, não tem subtexto aqui, é só um  fato que observei. Assim como atualmente tenho achado as loiras mais atraentes (acho que deste não escaparei à crítica, mas na realidade, tenho essas fases). Mas olhei para a caixa com um brilho nos olhos. Deveria haver muitas pérolas da música negra ali. Eu não alcançava, mas corri na cozinha peguei uma vassoura e puxei a caixa. Para minha alegria, havia um livro infantil, alguns xerox de anatomia com o nome de um tal Batista escrito a caneta, e o resto eram discos. A minha empolgação diminuiu um pouco ao perceber que não eram nem sequer a metade de música negra. Mas achei muita coisa interessante, nos disquinhos pequenos , principalmente. Eles são mais raros, sabe... Encontrei Bruce Springsteen, Elton John, Johnny Rivers, a tal de Lillian (uma Katy Perry de antigamente) umas três vezes, Kate Bush, o infalível Rei Roberto Carlos; pensei que se entre uma dúzia de discos que foram conhecidos e já não são mais, você encontra um de um cara que nunca por décadas esteve anônimo, você tem que respeitá-lo. Mas na real, rei mesmo nesta coleção é o Julio Iglesias. Uns  quatro títulos diferentes dele. Julio é o chefe destes fantasmas. O Raimundo Fagner bem que tentou alcançar o cara com dois LP's, mas não! Julio é  - ou era - soberano no coração do tal Batista , estudante de anatomia. Missão complicada conseguir exclusividade de uma pessoa tão eclética que coloca na mesma caixa, Renato e seus Blue Caps numa capa que recria uma moldura oval com um retrato envelhecido, e um título tradicionalista gaúcho com uma foto de capa interessante de nome "TERNURA NATIVA" .
  Bem, tinha trilha do filme Grease, da 9ª Reculuta da Canção Crioula, e mais um bocado de coisas de que jamais ouvi falar... Viajei por um tempo naquelas coisas velhas e esquecidas. Sempre acho que a gente não deve se preocupar muito em acumular coisas. Mas deixar coisas, como registros de um tempo, de uma vida, é bem poético. Lamentei, não pela primeira vez, o fato de nunca termos morado tanto tempo numa casa a ponto de acumular coisas que envelhecessem muito, para depois serem reencontradas por acidente e enganar a nossa noção de tempo. Se bem que nas casas que morei desde criança ao longo da vida, raramente tínhamos um sótão. Quando muito o tradicional forrinho raso; e mal as coisas que tínhamos mobiliavam os cômodos; um sótão então...
   Então eu acho estas coisas de outro tempo. Não contam nada sobre mim, mas contam sobre alguém. Histórias são preciosas para nós mesmo que não nos pertençam.
    O sol ainda não nascia e eu espalhei tudo em cima da cama. Peguei meu tablet e fotografei. Mas eu estava tão comovido que achei pouco. E cá estou, escrevendo sobre o ocorrido. Fazendo barulhos e remexendo nas coisas alheias, pra imaginar através de pistas, as experiências de outro. Que nem um camundongo. Aliás, eu enxerguei o rato num canto, enquanto voltava pro quarto com a caixa. Gordo e malandro, entrando correndo pra um buraco na parede. Nojento! No final, era na parede a folia. Mas nem liguei, fiquei mais interessado no meu tesouro.
   Engraçado, né!? Teria sido a pior madrugada da minha semana. Mas embora eu vá me atrasar um pouco pro trabalho, eu acho que vivi um momento único. Eu já escrevi isto em algum outros textos, mas " a gente encontra mágica em lugares inesperados."

P.S. : Os fantasmas não irão embora a não ser que alguém me empreste, ou doe, um toca-discos pra eu curtir a segunda parte dessa aventura.

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