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Como deve se sentir um homem que perde uma perna? Como ele segue na vida? Pois ele segue...
Eu hoje oficialmente não tenho mais avós vivos. Mas sigo tendo pernas e braços; embora meu cérebro registre uma perda e embora meu peito sinta um prejuízo. Mas estou inteiro; ou assim deveria me sentir.
A notícia da morte da minha vó veio e eu, espontaneamente, senti. Verdadeiramente, senti. Honestamente, senti. Achei que não devesse sentir tanto. Ela era uma pessoa doce e incrível, mas nosso contato era tão pequeno. Não lamento o afastamento. Ele não se deu por nenhum motivo que não a vida que divide os caminhos. Em seguida, eu achei que não deveria ter sentido tão pouco ou não devia ter me consolado tão rápido. Será tão frágil assim o apelo da consanguinidade? Tão tênue essa linha que nos prende à ancestralidade?
Sofro mais por pensar em quem vai sofrer mais do que eu. Penso na minha mãe que viu sumir-se da face da terra a porta que a trouxe ao mundo. Penso no que eu mesmo vou sentir quando for ela a ir embora. De certa forma, o outro morre mas eu sofro sempre por mim. Talvez esteja certo aquele amigo que tentou me convencer que o egoísmo rege nossas ações e sentimentos todos.
A vida tem de suas cretinices e a morte é a maior delas; pois mesmo quando chega obedecendo a ordem natural e esperada das coisas, traz um embate, um confrontamento... Uma não aceitação.
Um grande nó!
Ou a morte é uma cretinice da vida ou a vida é uma cretinice da morte. Seja como for, é o dividir das águas. A única real fronteira. A certeza sobre todas as certezas.
No ano passado, eu senti uma dor forte no peito que durou por muitas semanas. Eu pensei na possibilidade de estar fatalmente doente. Vislumbrei uma possibilidade real de morte e, estranhamente, na visão cruel dessa possibilidade, eu vi a vida, claramente por trás da névoa densa da rotina. Eu vi descortinar-se o mundo, como um presente que eu mal tirei do pacote e que agora poderia perder.
Eu penso na minha morte com uma teatralidade imensa. Penso em quem sofrerá e no quanto sofrerá. Penso na falta que vou fazer e no sentido que a minha vida poderá ter dado às outras vidas. Penso tanta besteira, com tanta gravidade, que meus olhos se enchem de água, pelo maravilhoso sentido que a vida poderia ter em seu desfecho...
Mas numa situações de morte real, eu só consigo ver o absurdo! Que o roteiro de uma morte é sempre péssimo. Que é idiota e de mau gosto, e que o meu sentimento em relação a ela é sempre inadequado.
Me lembro o quanto me questionei no velório do meu pai: " Não chore tanto!... Não chore tão pouco!... Não se descontraia!... Não mergulhe tanto nessa dor!...". Inadequado, era como eu me sentia. Nem reconhecia o quanto daquela dor era minha e o quanto eu só seguia o meu dever e o meu papel na trama.
Eu decidi ficar bem com a morte da minha vó. Perdoando o que não fomos, honrando o que fomos. Racionalizando o fato e compreendendo com naturalidade tudo isso. Sem sentir o que não sinto...
Mas ninguém me explica, por que mesmo querendo minimizar o drama e fazer piada de tudo isso, eu ainda me sinto num tipo de vácuo. De escuro.
Uma pessoa boa viveu e morreu. E eu a conheci. Lembro do seu cheiro, da sua textura. Sinto gratidão pois minha própria vida veio da vida dela. E mesmo assim, o sentido que deveria haver, de celebração pelo trajeto de uma vida, vira uma coisa fúnebre e pesada.
Como são inúteis os textos que fazemos para as pessoas mortas!
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