Vamos cuidar uns dos outros!

Ao fim da apuração, eu segurava a cabeça com as duas mãos. Eu não chorei mas mas quando os fogos começaram, me deu um nó!
 Achei mais sentido em sair e assistir a comemoração do que ficar amargurando tantos pensamentos em casa. Quem sabe eu visse algo inspirado ou quem sabe eu simpatizasse com algum dos vencedores...
"Não esquenta a cabeça e te cuida!" disse minha mãe; "Vida que segue!"
Fui para o centro caminhando. Seria uma hora de caminhada e isso me pareceu bom: esfriar a cabeça e me forçar desde já o exercício da minha liberdade, a reafirmação do meu espaço, da minha presença e da minha permanência, apesar dos pesares.
Tem um cãozinho na casa da minha mãe. Apareceu um certo dia e por lá ficou. Ganhou água e comida e decidiu não ir mais embora. Ele tem a mania de seguir a gente pela rua e eu sempre o enxoto; ralho com ele, jogo pedras...; Ele desvia, recua, desiste.
Ontem eu percebi que ele me seguia desde que saí pelo portão. Mas no meu desânimo não tive força para expulsá-lo. Estava sem humor para um embate ridículo daqueles. Então permiti que ele me acompanhasse por quantas quadras quisesse, imaginado que logo desistiria.
Já quase nos limites do meu bairro, enquanto eu pensava na minha tristeza e na tristeza das pessoas que eu gosto e me identifico, lembrei dele. Virei para trás e o observei caminhando na minha direção quase agachado. Me deu um cansaço! Queria expulsá-lo mas ele estava longe o suficiente para não achar o caminho de volta. Me olhava na expectativa do que eu iria fazer. Ele não era bem-vindo e sabia disso. Mesmo assim insistira em vir e eu nunca vou entender isso nos cachorros. Ele não poderia me amar ainda, sempre o ignorei ou enxotei... mas ele parece ter uma necessidade de pertencimento e isso eu acho que entendo um pouco melhor.
Seja lá qual fosse o seu estímulo ou o seu  impulso, ele venceu! "Vem" eu gritei; e ele veio! correndo, fazendo festa!... Deitou-se nos meus pés com a barriga para cima e eu sorri, numa hora em que um sorriso parecia impossível.

 Pois bem, o cão viria comigo e isso significava que eu não teria outra alternativa senão voltar a pé com ele depois. Afinal, era a casa dele também. A casa que ele escolhera para si.
Ao aceitar sua companhia, seria necessário cuidar dele. Ele é um cachorro de rua, mas das ruas da vizinhança e a partir dali tudo era um território novo.
 No começou ele traçou um perímetro ao redor das minhas pernas e nunca se fastou muito. Ficava engraçado oscilando entre estar feliz e estar assustado. Percebi que ele teme mais a outras pessoas do que a outros cachorros(nosso momento de maior empatia). Imaginei que o comum na vida dele até ali era ser enxotado.
Haviam alguns cachorros soltos em uma parte do caminho, então o peguei no colo naquele trecho. Não foi um prazer pra mim porque ele é um sujeitinho bem fedido, mas ele ficou feliz de uma maneira que me comoveu.
E assim , até chegar ao centro e à detestável comemoração eu fui sendo distraído pelos pequenos acontecimentos com o cãozinho: seus a travessares de rua, sua valentia numas horas, e covardia em outras, sua determinação e estupidez em seguir decididamente sem nem saber para onde!... a história da noite foi mudando, meu coração foi abrandando, minha raiva foi diluindo.
Do alto da escadaria já dava para visualizar a bagunça lá embaixo, na avenida da beira do rio. Buzinaço, fogos, gritos...
Eu estava um pouco nervoso e o cãozinho "muito" nervoso. "Vamos lá!... Vai ficar tudo bem", eu disse. Acho que falei mais para mim do que para ele.
Enquanto descíamos,  ele se encolhia a cada estrondo dos fogos e me olhava como a pedir uma explicação... Eu não tinha nenhuma! também não entendia aquela festa. Aquela festa também não era a minha.
 Sentei-me na calçada, na cadeira de um dos bares e ele aos meu pés. Vi alguns carros com bandeiras, algumas pessoas com camisetas... sempre observo muito essas pessoas para procurar num detalhe algo que explique as nossas divergências. Nunca vejo nada no detalhe mas do conjunto sempre entendo que faz sentido não estarmos do mesmo lado. Nunca rola aquela identificação e eu penso se não é algum tipo de preconceito. Seja ou não, é um sentimento bem legítimo. Estranho que seja mais fácil me identificar com o cãozinho... estranho não, na verdade, cães não discutem...mas curioso.
Não consegui ver nenhuma explicação no que eu via ali e e ainda estranhava aquela alegria; então decidi passar pelo ponto em que a gritaria era mais frenética. Tive medo pelo cãozinho, mas ele havia passado bem por todos os teste até ali e este era o último. depois dali iríamos embora.
Passamos devagar. Senti um bocado de coisas ao escutar as pessoas e o que gritavam. Suas expressões , suas argumentações, seu comportamento... Eu poderia dizer, que da minha perspectiva, eram apenas coisas a serem esquecidas; mas não! Elas reforçam as coisas nas quais eu acredito e pelas quais luto. Elas apontam exatamente as razões pelas quais eu pertenço aos grupos que pertenço e admiro as pessoas que eu admiro.
Na festa das pessoas, que representam a maioria numérica das pessoas do país onde eu vivo, eu achei empatia e algum conforto num cãozinho sem nome. A gente passou de orelhas baixas por entre uma multidão que, se pudesse nos enxotaria; mas passamos! e fomos pra casa em paz.
Foi um noite difícil mas cuidamos um do outro. Acho que somos  de novo, basicamente, os vira-latas da periferia. Mas não nos falta lealdade. Vamos cuidar uns dos outros!


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